sábado, 27 de dezembro de 2008

Televisão


Embora algumas pessoas procurem essas práticas antigas para libertar a mente de um ritmo padronizado (ioga, artes marciais, meditação), a maioria não o faz, recorrendo às drogas como alternativa. O álcool resulta, o Valium é mais eficaz. Alguns comprimidos para dormir também surtem efeito. E existe a televisão.


Qualquer um destes métodos funciona. As drogas oferecem-nos uma fuga ao tomarem a dimensão de experiência e meios de descontracção. O mesmo acontece com a televisão.


Todos ajudam a interromper o pensamento obssessivo, mas é este o único ponto em comum com a meditação e outras práticas.


...Perante o televisor, um guru tecnológico absorvente, a nossa mente por certo não se encontra "vazia", apesar da frequência alfa. As imagens fluem e a mente não está calma, sossegada nem liberta. Assemelha-se mais ao cérebro de um morto-vivo. Encontra-se ocupada. Nenhuma renovação, se mostra possível a partir desse estado. Para que tal se verifique, a mente deve abrandar e, uma vez repousada, procurar novos tipos de estímulos e novos exercícios. A televisão não oferece descanso nem estímulo.


A televisão inibe a nossa capacidade de pensar, e ao fazê-lo não nos conduz à liberdade mental, à descontracção ou a um renovar de energias. Apenas conduz a um estado de exaustão mental ainda mais acentuado. Pode libertar-nos temporariamente dos padrões de pensamento obssessivo anteriores, mas é tudo quanto pode fazer. Com ela a mente jamais se esvazia, vive ocupada. E o que é pior, com as imagens e pensamentos obssessivos dos outros.


Nesse sentido, serve apenas para dar continuidade aos mesmos padrões mentais de que procuramos libertar-nos. O nosso espírito encontra-se tão desgastado antes quanto depois de vermos televisão. Disso não pode resultar nada de novo ou criativo, apenas o sono, se tivermos sorte, tal como acontece no caso do álcool e do Valium.




Jerry Mander em Quatro Argumentos Para Acabar Com A Televisão

sábado, 20 de dezembro de 2008

Como Se Entrássemos Num Jardim


É na obra para a qual buscou um título bíblico, De profundis, que o escritor Oscar Wilde dá o sguinte testemunho :"No Natal, consegui apoderar-me de um Novo Testamento em grego, e todas as manhãs, depois de ter limpo a cela e de ter polido os pratos, leio um pouco dos Evangelhos... Nós perdemos a naiveté, a frescura e o encanto dos Evangelhos. Ouvimos lê-los demasiadas vezes, e mal de mais, e toda a repetição é anti-espiritual. Quando regressamos ao grego, é como se entrássemos num jardim de lírios, depois de sairmos de uma casa estreita e escura".

José Tolentino Mendonça em A Leitura Infinita

domingo, 7 de dezembro de 2008

Suave Como Uma Carícia


...Através da janela, os olhares dos machos pesaram tudo o que escolheram. Com os seus traços iluminados pela lâmpada muito próxima, as raparigas olham para o grupo de homens, de sorriso nos lábios. Esperam que cada gesto lhes vá valer mais um cliente. Essa esperança reanima-as. Mostram até ao último dos seus encantos, os que ainda estavm escondidos. Cínicamente, estendem as pernas, pondo à mostra as coxas, até à articulação das ancas, de olhos postos no grupo de homens, e à espera que lhes façam sinal.

Por momentos, as que tiveram mais sorte voltam, de cara sorridente. A velha que prepara café turco num canto do quarto envolve-as com o olhar, suave como uma carícia...
Mircea Eliade em O Romance do Adolescente Míope

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Uma Corrente Indomável


...Os nossos pontos de vista são completamente opostos, e é por isso que somos inseparáveis. Ele, é céptico, eu, sou dogmático. Ele, é materialista, eu, sou vitíma da metafísica. Ele, é calmo e mostra uma indiferença fria, eu, sou como uma corrente indomável.

Andamos um ao lado do outro de noite, atormentados pelos nossos pensamentos. Às vezes, colocamo-nos problemas sobre as mulheres, o amor, os corpos. Mas vemos tudo isso à luz da inteligência, da qual somos ambos orgulhosos. No fundo dos nossos corações, somos os dois autênticos sentimentais. E sabemos disso os dois. E - como sabemos em que é que somos vulneráveis- fazemos o possível para o esconder.


Mircea Eliade em O Romance do Adolescente Míope

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Algumas Reflexões Morais


A maior parte das vezes, as nossas virtudes não passam de vícios mascarados.


O amor-próprio é o nosso maior adulador.


A paixão pode enlouquecer os mais espertos, como pode levar os mais idiotas a tornarem-se muito industriosos.


As paixões têm a sua lógica própria e fabricam injustiças, o que faz com que seja perigoso segui-las. Logo, devemos ser cautelosos mesmo quando aos nossos olhos parecem justificáveis.


As paixões engendram muitas vezes os seus contrários. A avareza leva, por vezes, à prodigalidade e vice-versa; podemos ser firmes e determinados porque somos fracos, tal como podemos ser audazes porque somos tímidos.



François de La Rochefoucauld em Memórias e Reflexões Morais

sábado, 15 de novembro de 2008

Vejo Passar os Barcos


Vejo passar os barcos
sob a chuva

Sentado sobre a ausência

Nenhuma boca
pronuncia
o nome

De mãos vazios
vejo passar
os barcos

Egito Gonçalves em O Fósforo no Palheiro

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

TV & Necessidades


Aquilo a que assistimos na televisão é o que decorre da mentalidade e dos objectivos de cem empresas.
Embora a televisão pretenda ser uma tecnologia de massas aberta a todas as pessoas, visto todos poderem passar pela experiência de ver televisão, ela de facto pouco mais é do que o instrumento dessas empresas.
Nos EUA, quatro em cada cinco dólares dos rendimentos televisivos advêm dessas empresas, o que significa obviamente que se as redes de televisão não as "lisonjeassem", deixariam de existir. ... Sem esse instrumento único e monolitico que é a televisão, o poder e controlo efectivos dessas grandes empresas não poderia exercer-se com acontece actualmente.
Um empreendimento económico monolitico necessita de meios de transmissão monoliticos para para divulgar a sua filosofia e promover mudanças rápidas nos padrões de consumo. As próprias empresas não poderiam existir sem um instrumento como a televisão, capaz de atingir todas as pessoas ao mesmo tempo e adaptar as necessidades humanas ao novo modelo do meio ambiente.

Jerry Mander em Quatro argumentos para Acabar com a Televisão

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Continentes e Desertos


Na praia sob um chapéu à Hockney
eu vi uma história da guerra
o sol que me caía no corpo também caía
no vosso corpo

sobre a praia sob o chapéu de listas
verdes e azuis mal se distinguindo a luz
do verde e do azul sendo sempre aos que
passavam só azul, apenas verde como

vós, perfeitos corpos imperfeita coisa
de dizer. Um,
era a própria corrida que lançava sobre
a Costa a leve penugem negra como só

aos trinta anos ainda têm os portugueses
ah! oh! o outro não era tão bonito
era bonito, lembrando a cada um a guerra
a guerra a guerra puta que pariu
e mais às áfricas, com menos uma perna era

levado sob a areia
que ventos levemente erguiam
com um braço sobre o outro entrando o
mar

Ainda havia uma criança, algumas bichas
e um moinho de papel que depois comprei.
João Miguel Fernandes Jorge em Poemas Escolhidos

domingo, 28 de setembro de 2008

Paul Newman (1925-2008)


Lucas, 21, 28



Quando o último pássaro morrer
na última oliveira a ocidente
opõe o peito ao que acontecer
e levanta a cabeça dignamente

Despede-te da terra onde nascer
tu nascias enfim contìnuamente
repara no nascente e no poente
que muito em breve deixarás de ver

Não valem cinco pássaros apenas
dois asses e Deus não os reconhece
no meio das demais coisas terrenas?

Levanta-te. Coragem coração
O Espírito nas coisas comparece
Aproxima-se a libertação


Ruy Belo em Homem de Palavra(s)

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

A Grajeia


A grajeia caíu
no próprio chão que havia.

Amarelo impossível,
de trémulas mãos
a grajeia saltou
e no chão rolou,
se arredondinhou.

Cara de santinha,
quase auréola tinha.
Santa que tira a febre,
não santa que a dá,
cara de lua cheia,
a grajeia ficou
onde esteve (está?)

Alexandre O'Neill em As horas já de números vestidas (1981)

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Mendigo Com Lugar Cativo


Com o tapa-misérias a escorrer-lhe dos ombros,
o morse da bengala apercutir o chão,
remorseando vai os passarões que somos.

A dedo, a medo, a desfazer o gesto,
na ranhura da caixa a moeda metemos.

Metida a moeda, o espantalho fala
do céu que, sem dúvida, merecemos.

Que pragas calarás quando não damos?

Alexandre O'Neill em As Horas Já De Números Vestidas (1981)

sábado, 6 de setembro de 2008

Fala!


Fala a sério e fala no gozo
fá-la p'la calada e fala claro
fala deveras saboroso
fala barato e fala caro

Fala ao ouvido fala ao coração
falinhas mansas ou palavrão

Fala à miúda mas fá-la bem
Fala ao teu pai mas ouve a tua mãe

Fala franciú fala béu-béu

Fala fininho e fala grosso
desentulha a garganta levanta o pescoço

Fala como se falar fosse andar
fala com elegância muita e devagar.

Alexandre O'Neill em Abandono Vigiado (1960)

sexta-feira, 11 de julho de 2008

Os Faxes


Por causa dos fusos horários, que eram muitos, os faxes chegavam de madrugada. Entravam por baixo da porta empurrados pelo empregado nocturno do hotel, e eu ouvia-os a escorregarem pela frincha da porta, e imaginava que era ela a sussurar-me. Depois, adormecia novamente, e só quando me levantava de manhã os lia - muito vagarosamente - enquanto tomava o pequeno-almoço.


António Pinto Ribeiro em Melancolia

quarta-feira, 9 de julho de 2008

Bilhetes


Nas duas primeiras vezes só me apercebi dessa presença quando, arrumando a roupa nas gavetas do quarto do hotel, uma tira de papel branco com a frase "volta depressa" caiu para o chão e, mais tarde, quando abri o estojo de viagem e vi um outro bilhetinho que dizia "não te eclipses". Depois, eu próprio, já prestes a fechar a mala, interrompia a operação e afastava-me para lhe dar tempo par lá pôr outro bilhete. Quando chegava ao destino, abria a mala e era a primeira coisa que procurava.

António Pinto Ribeiro em Melancolia

quarta-feira, 2 de julho de 2008

Um Atraso Português


A qualidade do trabalho dos jornalistas está em vias de regressão e, com a precarização galopante da profissão, acontece o mesmo com o seu estatuto social. Assiste-se a uma autêntica e tremenda taylorização profissão.É preciso ver no que se transformaram as redacções, quer as dos jornais quer as das rádios e das televisões: reparamos nas celebridades que assinam os grandes editoriais ou que apresentam os telejornais, mas essas "estrelas" ocultam, de facto , centenas de jornalistas reduzidos à situação de meros auxiliares. "Aos poucos, o sector dos media foi ganho, por sua vez, pelo neoliberalismo, e a informação tende a ser cada vez mais uma subempreitada entregue a jornalistas precários prontos para todos os fretes que trabalham as matérias que lhes são fornecidas e fabricam uma informação por encomenda."

Ignacio Ramonet em A Tirania da Comunicação com citação de Patrick Champagne (1998/99)

quarta-feira, 25 de junho de 2008

Sol de Inverno


Os joelhos gelam ao vento alto das ervas.
Caminho soprado, sôfrego, a boca rasa.
Nós agudos, montanha viva, acesa face.
Estrito o sol se apura a fio.
Pedras com sabor de terra nua.
O caminho arrefece já sob as sombras.
Sede de vento alto que se desfaz.
Límpido e frio, a nula fronte do ar me investe.

António Ramos Rosa em Nos Seus Olhos De Silêncio

sexta-feira, 13 de junho de 2008

Reviver


Quando foi a última vez que vos beijaram as mãos? E, se beijaram, como é que sabem que foi bem feito? ( Mais, quando foi a última vez que alguém vos escreveu a dizer que vos beijava as mãos?) Eis o argumento do mundo da renúncia. Se sabemos mais de consumação, eles sabiam mais de desejo. Se sabemos mais de números, eles sabiam mais de desespero. Se sabemos mais de gabarolice, eles sabiam mais de lembrança. Eles tinham beijos nos pés, nós temos de chupar os dedos. Ainda preferem o nosso lado da equação? Pode ser que tenham razão. Então tentem uma formulação mais simples: se nós sabemos mais de sexo, eles sabiam mais de amor.

Julian Barnes em Reviver in A Mesa Limão

sexta-feira, 6 de junho de 2008

Matar Saudades (II) - Das Sardinhas e do Eduardo


A questão naquela noite de sardinhada, em Alfama, é que eu já não queria sardinhas nenhumas e tinha de fingir. Não podia desaparecer de um momeno para o outro. Mas tinha sofrido o meu primeiro choque afectivo, aprendera à minha custa que as pessoas nunca estão definitivamente adquiridas, e o peixe abandonado gera os focos de infecção. Fechei os olhos para não te ver, apetecia-me que não tiveses nunca existido, mas continuei de mãos dadas contigo, para que todos acreditassem que tudo estava bem connosco. Mais tarde saberia que tinha sido melhor assim. E que as sardinhas sabiam melhor do que alguma vez pensara.



Eduardo Prado Coelho em Nacional e Transmissível

quarta-feira, 28 de maio de 2008

Matar Saudades - Do Bacalhau e do Eduardo


" O bacalhau ia e vinha por entre as conversas habituais. Para uns, a televisão, algum "fait-divers" dos telejornais, os concursos e as telenovelas ( mais as portuguesas do que as brasileiras). Insistiam em que o bacalhau estivesse pouco salgado, e pediam que na semana seguinte fosse assado com batatas a murro. Outros discutiam sobretudo futebol, numa rivalidade entre o Sporting e o Benfica, apenas atenuada pela embirração de não gostarem nem do F.C.Porto, nem sobretudo do Pinto da Costa e a sua lata tão inexcedível que até engoliu o apito. Às vezes falavam de política e comentavam o Sócrates depois de se terem metodicamente atirado ao Santana Lopes. Mas era raro, o futebol estava primeiro, rei de todos os desportos tal como o bacalhau era rei da gastronomia autenticamente portuguesa. "Então hoje temos bacalhauzada?" . E a pergunta, algo teórica, abria um espaço de convivialidade gastronómica"

Eduardo Prado Coelho em Nacional e Transmissível

sábado, 24 de maio de 2008

Micropaisagem


PUZZLE

I

O sono
cresce como
se
uma anestesia
ténuescura
se
propagasse
do cérebro
pela rede nervosa
friamente
até aos dedos
e o tacto
dos homens
esquecesse

Carlos de Oliveira "Micropaisagem"

quinta-feira, 22 de maio de 2008

Posto de Gasolina


Poiso a mão vagarosa no capot dos car-

ros como se afagasse a crina dum cavalo.

Vêm mortos de sede.Julgo que se perderam

no deserto e o seu destino é apenas terem

pressa. Neste emprego, ouço o ruído da en-

grenagem, o suave movimento do mundo a

acelerar-se pouco a pouco. Quem sou eu, no

entanto, que balança tenho para pesar sem

erro a minha vida e os sonhos de quem

passa?
Carlos de Oliveira "Sobre o Lado Esquerdo"

sexta-feira, 16 de maio de 2008

A Máquina de Escrever


Massacrada e obsoleta, relíquia de uma época que rapidamente se esfuma na memória, o diabo da máquina nunca me desiludiu. Neste preciso momento em que evoco os nove mil e quatrocentos dias que já passámos juntos, ei-la aqui, diante de mim, tartamudeando a sua velha música, esta música que conheço de cor. Estamos no Connecticut para o fim-de-semana.

É Verão e a manhã que se vê da janela é quente e verde e bela. A máquina de escrever está na mesa da cozinha e as minhas mãos estã na náquina de escrever. Letra a letra, vi-a escrever estas palavras.


Paul Auster e Sam Messer em A História da Minha Máquina de Escrever

quarta-feira, 7 de maio de 2008

Uma Boa Cerca Faz Bons Vizinhos


" No meu ponto de vista, o contrário da guerra não é amor, e o contrário da guerra não é compaixão, e o contrário das guerra não é generosidade ou irmandade ou perdão. Não, o contrário da guerra é a paz. As nações precisam de viver em paz. Se vier a ver o Estado de Israel e o Estado da Palestina a viverem lado a lado com vizinhos honestos, sem opressão, sem exploração, sem derramamento de sangue, sem terror, sem violência, ficarei satisfeito mesmo que não prevaleça o amor. E como diz o poeta Robert Frost : "Uma boa cerca faz bons vizinhos."

Uma das coisa que torna especialmente duro o conflito palestiniano-israelita ou árabe-israelita é que se desenrola entre duas vítimas. Duas vítimas do mesmo opressor. A Europa - que colonizou o munso árabe, o explorou, o humilhou, que pisou a sua cultura, o controlou e o usou como pátio de recreio imperialista - é a mesma Europa que discriminou os Judeus, os perseguiu, os acossou, e, finalmente, os assassinou em massa num crime genocida sem precedentes."


Amos Oz em Da Necessidade de Chegar a Um Compromisso e da Sua natureza

quinta-feira, 24 de abril de 2008

A Guerra Colonial


... Aí, durante um ano, morremos não a morte da guerra, que nos despovoa de repente a cabeça num estrondo fulminante, e deixa em torno de si um deserto desarticulado de gemidos e uma confusão de pânico e de tiros, mas a lenta, aflita, torturante agonia da espera, a espera dos meses, a espera das minas na picada, a espera do paludismo, a espera do cada vez mais improvável regresso, com a família e os amigos no aeroporto ou no cais, a espera do correio, a espera do Jeep da PIDE que semanalmente passava a caminho dos informadores da fronteira, trazendo consigo três ou quatro prisioneiros que abriam a própria cova, se encolhiam lá dentro, fechavam os olhos com força, e amoleciam depois da bala como um soufflé se abate, de flor vermelha de sangue a crescer as pétalas na testa :
- O bilhete para Luanda- explicava tranquilamente o agente a guardar a pistola no sovaco.-Não se pode dar cúfia a estes cabrões.
.....................................................................................................................................

Passámos vinte e sete meses juntos nos cus de Judas, vinte e sete meses de angústia e morte nos cus de Judas, nas areias do Leste, nas picadas dos Quiocos e nos girassóis de Cassanje, comemos a mesma saudade, a mesma merda, o mesmo medo, e separámo-nos em cinco minutos, um aperto de mão, uma palmada nas costas, um vago abraço, e eis que as pessoas desaparecem, vergadas ao peso da bagagem, pela porta de armas, evaporadas no redemoinho civil da cidade.

António Lobo Antunes em Os Cus de Judas

sábado, 19 de abril de 2008

Exercício


Nos dias em que o vento anima a roupa
suspensa desta ou daquela janela
o meu olhar perdido não a poupa
e vai seguindo os movimentos dela


Aqui estou tristezas alegrias
Nesta colina do instante canto
esta vida indecisa de maresias
ó vida ameaçada enquanto


a minha grande esperança é o café
Agora que o tomei
com pressa e frenesim até
o que vai ser a vida ainda não sei


Mosteiro dos Jerónimos fachada
impassível ao vão vaivém humano
aqui ando eu perdido de ano em ano
ó vida noves fora nada


Nos dúbios dias da destruição do verão
quando tudo parece ir acabar
regresso então à versificação
e encontro nos papéis o meu segundo mar


Ruy Belo em Homem de Palavra(s)

domingo, 13 de abril de 2008

Militares ( II )


Nicolau precipitou-se para os carros que aparelhavam rumo a Kimaria. Em poucos minutos puseram-se em marcha. Os soldados saíam das casernas como vespas cujo ninho fora agitado, corriam para os caminhões, meio vestidos, os dedos no gatilho, os petrechos tinindo. Dois capitães gritavam ordens, itinerários, planos, recomendações de última hora. Já a coluna ia em movimento e ainda alguns militares corriam a apanhá-la. Só o comandante e o major não se mostraram.

António Vieira em Fim de Império

sexta-feira, 11 de abril de 2008

Militares ( I )


"Os exércitos permanentes (miles perpetuus) devem, com o tempo, desaparecer totalmente)"

Pois ameaçam incessantemente os outros Estados com a guerra em virtude da sua prontidão para aparecerem sempre preparados para ela; os Estados estimulam-se reciprocamente a ultrapassar-se na quantidade dos mobilizados que não conhece nenhum limite, e visto que a paz, em virtude dos custos relacionados com o armamento, se torna finalmente mais opressiva do que uma guerra curta, eles próprios são a causa de guerras ofensivas para se libertarem de tal fardo; acrescente-se que pôr-se a soldo para matar ou ser morto parece implicar um uso dos homens como simples máquinas e instrumentos na mão de outrem (do Estado) , uso que não se pode harmonizar bem com o direito da humanidade na nossa própria pessoa. Uma coisa inteiramente diferente é defender-se e defender a Pátria dos ataques do exterior com o exercício militar voluntário dos cidadãos realizado periodicamente.

Immanuel Kant em A Paz Perpétua e Outros Opúsculos

sábado, 5 de abril de 2008

Os Homens do Terror


Naturalmente, o convencimento da sua própria superioridade não é uma especificidade da mentalidade árabe; no que a isto diz respeito, os europeus e os norte-americanos não ficam nada atrás de outras culturas. O que, no entanto, lhes confere uma energia particular reside em dois factores. O primeiro é que a crença na própria supremacia tem um fundamento religioso. O segundo é que ela colide com as próprias fraquezas óbvias. Isto leva a uma humilhação narcísica, que exige compensação. Atribuições de culpa, teorias de conspiração e projecções de toda a espécie fazem, desta maneira, parte da economia emocional colectiva. Consequentemente, para eles, o mundo exterior hostil só pensa em humilhar os muçulmanos árabes.
Por isso se reage com irritabilidade extrema a qualquer ofensa, pretensa ou verdadeira. Quão fácil é a instrumentalização duma tal sensibilidade não constitui segredo nenhum. Todo o colectivo de perdedores tende para estados de exaltação, que se deixam explorar politicamente. Por mais fútil ou risível que um motivo possa parecer, a tentação de extrair dele um capital político é irresistível para qualquer uma das partes estrategicamente interessadas.


Hans Magnus Enzensberger em Os Homens do terror, Ensaio sobre o perdedor radical

quinta-feira, 20 de março de 2008

Utopias


O utopista, escreve Popper," pode procurar a sua cidade celestial no passado ou no futuro, pode pregar o "regresso à natureza" ou o "avanço para um mundo de amor e beleza", mas o apelo é sempre às nossas emoções, e não à razão. Mesmo com as melhores intenções de construir um Céu na Terra, ele só consegue transformá-la num inferno - aquele inferno que só o homem sabe preparar para os seus semelhantes".

Ralf Dahrendorf em Reflexões Sobre a Revolução na Europa

sexta-feira, 14 de março de 2008

Politização


"...o conflito político designa a tensão entre o corpo social estruturado , dentro do qual cada parte ocupa o seu lugar, e a afirmação de que "há uma parte dos sem-parte" que vem abalar essa ordem em razão do princípio de universalidade vazio , daquilo a que Balibar chama a igualiberdade, a igualdade de princípio de todos os homens enquanto seres dotados de palavra. O próprio da política induz sempre, portanto, uma espécie de curto-circuito entre o universal e o particular: o paradoxo de um singular universal, repondo em questão a ordem funcional "natural" das relações no corpo social. Esta identificação dos sem-parte com o Todo, da parte da sociedade que é desprovida de lugar verdadeiramente justo dentro dela ( ou à qual repugna aceitar o lugar de segunda categoria que dentro dela lhe é concedido) com o universal é o gesto elementar da politização, detectável em todos os grandes acontecimentos democráticos, da Revolução Francesa ( em cujo decorrer o terceiro estado se proclamou idêntico à Nação enquanto tal, contra a aristocracia e o clero) ao desaparecimento do ex-socialismo europeu ( em cuja ocasião os fóruns dissidentes se instituíram com representativos da sociedade inteira contra a nomenklatura do partido). Nesta acepção precisa, política e democracia são sinónimas : o desígnio fundamental de uma política antidemocrática é e foi sempre , e por definição, a despolitização, quer dizer , a reclamação incondicional de que "as coisas regressem ao normal" e de que cada indivíduo retome o seu posto..."

Slavoj Zizek em Elogio da Intolerância

quarta-feira, 5 de março de 2008

Alexandre O'Neill

Pedra-Final

Tanta gente,
tantos enredos
até ficarmos para sempre
quedos!

Para sempre? Não!
Que outros (mínimos) seres
já trabalham na nossa remoção.

De Ombro na Ombreira (1969)

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Ruy Belo faria 75 anos


O Portugal Futuro

O Portugal futuro é um país
aonde o puro pássaro é possivél
e sobre o leito negro do asfalto da estrada
as profundas crianças desenharão a giz
esse peixe da infância que vem na enxurrada
e me parece que se chama sável
Mas desenhem elas o que desenharem
é essa a forma do meu país
e chamem elas o que lhe chamarem
Portugal será e lá serei feliz
Poderá ser pequeno como este
ter a oeste o mar e a espanha a leste
tudo nele será novo desde os ramos à raiz
À sombra dos plátanos as crianças dançarão
e na avenida que houver à beira-mar
pode o tempo mudar será verão
Gostaria de ouvir as horas do relógio da matriz
mas isso era o passado e podia ser duro
edificar sobre ele o Portugal futuro

em Homem de Palavra(s) 1970

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

As Sociedades Civis


"...as sociedades civis só serão construídas se aprendermos a viver em conjunto como cidadãos, mesmo que diferenças religiosas, linguísticas, culturais ou étnicas nos dividam. A homogeneidade pode ser uma proposta atraente para alguns, mas ela é também ameaçadora. Por um lado, não há povos completamente homogéneos. Por isso, o desejo de homogeneidade leva muito provavelmente à supressão das minorias, bem como a ataques contra os vizinhos. Por outro lado, as "nações" homogéneas são frequentemente antiquadas e estreitas. São tribos, mais do que países, e por isso são inimigas do ideal da sociedade aberta."

Ralf Dahrendorf na introdução à edição portuguesa de Reflexões Sobre a Revolução na Europa

sábado, 16 de fevereiro de 2008

Sobre a Treta


"Por muito que aja de forma estudada e consciente, o treteiro procura sempre passar algo de forma sub-reptícia e não controlada.
Há certamente no seu labor, tal como no do artesão negligente, uma espécie de laxismo que resiste ou evita a exigência de uma disciplina desinteressada e austera. O modo pertinente deste laxismo não pode ser assemelhado, como é óbvio, à simples falta de cuidado ou atenção ao detalhe...
...Mentir ou fazer bluff são ambos modos de distorção ou falácia. Ora, o conceito mais central á natureza específica da mentira é o de falsidade: o mentiroso é, essencialmente, alguém que divulga uma falsidade. Também fazer bluff implica uma intenção de comunicar algo falso. Contudo, ao contrário da mentira, o bluff é mais um caso de falsificação do que falsidade. È isto que o aproxima da treta. Porque o que caracteriza a essência da treta não é ser falsa, mas ser uma imitação, uma falsificação da verdade . Para compreender esta distinção temos que admitir que uma falsificação ou imitação não é necessáriamente inferior ao original, salvo no facto de não ser autêntica. O que não é genuíno não é obrigatoriamente defeituoso. Pode bem ser, afinal de contas, uma cópia fiel. O que está errado numa falsificação não é aquilo que ela é, mas sim o modo como foi feita. Isto aponta para um aspecto semelhante e fundamental na natureza da treta: embora seja produzida sem uma preocupação pela verdade, não tem que ser necessariamente falsa. O treteiro imita a aparência das coisas. Mas isso não significa que as represente mal."

Harry G. Frankfurt em Da Treta

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Da Treta/ On Bullshit


"Segundo a generalidade dos nossos melhores dicionários, a palavra treta entrou no vocabulário português no século XVII por influência castelhana. O Dicionário da Academia Real espanhola afirma que entrou no vocabulário castelhano por influência do francês traite (ordenha). O Aurélio,porém, vai mais longe: radica a nossa treta no étimo latino tracta, feminino do particípio tractus, -a, -um, do verbo trarere (= extrair, ordenhar).
Quanto ao Brasil, os melhores dicionários ( Aurélio, Houiass, Pedro Machado, Morais ) defendem que é treita, o que sugere- tendo em conta o processo evolutivo Tracta>traita>treita>treta - que a nossa treta terá sido usada ainda antes do século XVII na forma treita, justificando o uso brasileiro referido pelos dicionários, ou seja, a treita terá sido levada para lá pelos primeiros colonizadores no século XVI.
Quanto à evolução semântica, é bem de ver a metáfora de um dos significados actuais da treta: quando o homem quis ordenhar a vaca, a cabra ou a burra, teve de simular, com a manipulação das mãos, a boca do bezerro, do cabrito ou do potro a mamar na teta. E daí o significado de ardil, manha, embuste, engano.
O francês traite deu o verbo traiter, a menos que este tenha provindo directamente do latino tractare, que por suavez deriva de tracta, donde proveio o nosso tratar, com, entre outros, o significado de negociar. Curioso é atentar na acepção mais pejorativa do significado do particípio presente deste verbo, tratante. O tratante é, para além do negociante, também o vendedor de banha da cobra, o manhoso.
Ou, o treteiro."

António Marques em Breve nota etimológica na introdução a Da Treta de Harry G. Frankfurt

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Má Consciência


O adjectivo
dá-me de comer.
Se não fora ele
o que houvera de ser?

Vivo de acrescentar às coisas
o que elas não são
Mas é por cálculo
não por ilusão

Alexandre O'Neill em De Ombro na Ombreira (1969)

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Uma Reportagem Sobre a Banalidade do Mal


"E da mesma forma que nos países civilizados a lei parte do princípio que a voz da consciência diz a cada um "não matarás" , mesmo que os desejos e as inclinações naturais do homem possam, por vezes, ser assasinos, também a lei de Hitler exigia que a voz da consciência dissesse a cada um "matarás", embora os organizadores dos massacres estivessem bem cientes de que o assassínio vai contra os desejos e inclinações normais da maioria das pessoas. No Terceiro Reich, o mal tinha perdido aquela característica que o torna reconhecível para a maior parte das pessoas - a caracteristica de ser uma tentação. Muitos alemães e muitos nazis, provavelmente a esmagadora maioria, ter-se-ão possivelmente sentido tentados a não matar, a não roubar, a não deixar que os seus vizinhos fossem levados para a morte ( porque sabiam, evidentemente, que era essa a sorte reservada aos judeus, ainda que muitos deles pudessem desconhecer os pormenores macabros), a não se tornarem cúmplices destes crimes, beneficiando deles. Mas Deus sabe que tinham aprendido a resistir à tentação"


Hannah Arendt em Eichmann em Jerusalém

sábado, 9 de fevereiro de 2008

A Europa e o Futuro


"O génio da Europa é aquilo que William Blake teria chamado "a santidade do pormenor diminuto". È o génio da diversidade línguistica, cultural e social, de um mosaico pródigo que muitas vezes percorre uma distância trivial, separado por vinte quilómetros, uma divisão entre mundos.

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Mas como se poderão equilibrar as proposições contraditórias da unificação económico-política com aquelas da particularidade criativa? Como poderemos dissociar uma riqueza salvífica de diferenças da longa crónica de ódios mútuos? Não sei a resposta. Só sei que aqueles mais sábios do que eu têm de a encontrar, e que a hora é tardia."


George Steiner em A Ideia de Europa

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

Somos


"Somos bípedes capazes de sadismo indizível, ferocidade territorial, ganância, vulgaridade e todo o tipo de torpeza. A nossa inclinação para o massacre, para a superstição, para o materialismo e o egotismo carnívoro pouco se alterou durante a breve história da nossa estada na Terra. No entanto, este mamífero desgraçado e perigoso gerou três ocupações, vícios ou jogos de uma dignidade completamente transcendente. São eles a música, a matemática e o pensamento especulativo ( no qual incluo a poesia, cuja melhor definição será música do pensamento)."

George Steiner em A Ideia de Europa

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

É essencial ser elitista


"É essencial ser elitista - mas no sentido original da palavra: assumir a responsabilidade pelo "melhor" do espírito humano. Uma élite cultural deve ter responsabilidade pelo conhecimento e preservação das ideias e dos valores mais importantes, pelos clássicos, pelo significado das palavras, pela nobreza do nosso espírito. Ser elitista, com explicou Goethe, significa ser respeitador: respeitador do divino, da natureza, dos nossos congéneres seres humanos, e, assim, da nossa própria dignidade humana."

Rob Reimen
Director fundador do Nexus Institute
Introdução a A Ideia da Europa de George Steiner