quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Ruy Belo faria 75 anos


O Portugal Futuro

O Portugal futuro é um país
aonde o puro pássaro é possivél
e sobre o leito negro do asfalto da estrada
as profundas crianças desenharão a giz
esse peixe da infância que vem na enxurrada
e me parece que se chama sável
Mas desenhem elas o que desenharem
é essa a forma do meu país
e chamem elas o que lhe chamarem
Portugal será e lá serei feliz
Poderá ser pequeno como este
ter a oeste o mar e a espanha a leste
tudo nele será novo desde os ramos à raiz
À sombra dos plátanos as crianças dançarão
e na avenida que houver à beira-mar
pode o tempo mudar será verão
Gostaria de ouvir as horas do relógio da matriz
mas isso era o passado e podia ser duro
edificar sobre ele o Portugal futuro

em Homem de Palavra(s) 1970

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

As Sociedades Civis


"...as sociedades civis só serão construídas se aprendermos a viver em conjunto como cidadãos, mesmo que diferenças religiosas, linguísticas, culturais ou étnicas nos dividam. A homogeneidade pode ser uma proposta atraente para alguns, mas ela é também ameaçadora. Por um lado, não há povos completamente homogéneos. Por isso, o desejo de homogeneidade leva muito provavelmente à supressão das minorias, bem como a ataques contra os vizinhos. Por outro lado, as "nações" homogéneas são frequentemente antiquadas e estreitas. São tribos, mais do que países, e por isso são inimigas do ideal da sociedade aberta."

Ralf Dahrendorf na introdução à edição portuguesa de Reflexões Sobre a Revolução na Europa

sábado, 16 de fevereiro de 2008

Sobre a Treta


"Por muito que aja de forma estudada e consciente, o treteiro procura sempre passar algo de forma sub-reptícia e não controlada.
Há certamente no seu labor, tal como no do artesão negligente, uma espécie de laxismo que resiste ou evita a exigência de uma disciplina desinteressada e austera. O modo pertinente deste laxismo não pode ser assemelhado, como é óbvio, à simples falta de cuidado ou atenção ao detalhe...
...Mentir ou fazer bluff são ambos modos de distorção ou falácia. Ora, o conceito mais central á natureza específica da mentira é o de falsidade: o mentiroso é, essencialmente, alguém que divulga uma falsidade. Também fazer bluff implica uma intenção de comunicar algo falso. Contudo, ao contrário da mentira, o bluff é mais um caso de falsificação do que falsidade. È isto que o aproxima da treta. Porque o que caracteriza a essência da treta não é ser falsa, mas ser uma imitação, uma falsificação da verdade . Para compreender esta distinção temos que admitir que uma falsificação ou imitação não é necessáriamente inferior ao original, salvo no facto de não ser autêntica. O que não é genuíno não é obrigatoriamente defeituoso. Pode bem ser, afinal de contas, uma cópia fiel. O que está errado numa falsificação não é aquilo que ela é, mas sim o modo como foi feita. Isto aponta para um aspecto semelhante e fundamental na natureza da treta: embora seja produzida sem uma preocupação pela verdade, não tem que ser necessariamente falsa. O treteiro imita a aparência das coisas. Mas isso não significa que as represente mal."

Harry G. Frankfurt em Da Treta

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Da Treta/ On Bullshit


"Segundo a generalidade dos nossos melhores dicionários, a palavra treta entrou no vocabulário português no século XVII por influência castelhana. O Dicionário da Academia Real espanhola afirma que entrou no vocabulário castelhano por influência do francês traite (ordenha). O Aurélio,porém, vai mais longe: radica a nossa treta no étimo latino tracta, feminino do particípio tractus, -a, -um, do verbo trarere (= extrair, ordenhar).
Quanto ao Brasil, os melhores dicionários ( Aurélio, Houiass, Pedro Machado, Morais ) defendem que é treita, o que sugere- tendo em conta o processo evolutivo Tracta>traita>treita>treta - que a nossa treta terá sido usada ainda antes do século XVII na forma treita, justificando o uso brasileiro referido pelos dicionários, ou seja, a treita terá sido levada para lá pelos primeiros colonizadores no século XVI.
Quanto à evolução semântica, é bem de ver a metáfora de um dos significados actuais da treta: quando o homem quis ordenhar a vaca, a cabra ou a burra, teve de simular, com a manipulação das mãos, a boca do bezerro, do cabrito ou do potro a mamar na teta. E daí o significado de ardil, manha, embuste, engano.
O francês traite deu o verbo traiter, a menos que este tenha provindo directamente do latino tractare, que por suavez deriva de tracta, donde proveio o nosso tratar, com, entre outros, o significado de negociar. Curioso é atentar na acepção mais pejorativa do significado do particípio presente deste verbo, tratante. O tratante é, para além do negociante, também o vendedor de banha da cobra, o manhoso.
Ou, o treteiro."

António Marques em Breve nota etimológica na introdução a Da Treta de Harry G. Frankfurt

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Má Consciência


O adjectivo
dá-me de comer.
Se não fora ele
o que houvera de ser?

Vivo de acrescentar às coisas
o que elas não são
Mas é por cálculo
não por ilusão

Alexandre O'Neill em De Ombro na Ombreira (1969)

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Uma Reportagem Sobre a Banalidade do Mal


"E da mesma forma que nos países civilizados a lei parte do princípio que a voz da consciência diz a cada um "não matarás" , mesmo que os desejos e as inclinações naturais do homem possam, por vezes, ser assasinos, também a lei de Hitler exigia que a voz da consciência dissesse a cada um "matarás", embora os organizadores dos massacres estivessem bem cientes de que o assassínio vai contra os desejos e inclinações normais da maioria das pessoas. No Terceiro Reich, o mal tinha perdido aquela característica que o torna reconhecível para a maior parte das pessoas - a caracteristica de ser uma tentação. Muitos alemães e muitos nazis, provavelmente a esmagadora maioria, ter-se-ão possivelmente sentido tentados a não matar, a não roubar, a não deixar que os seus vizinhos fossem levados para a morte ( porque sabiam, evidentemente, que era essa a sorte reservada aos judeus, ainda que muitos deles pudessem desconhecer os pormenores macabros), a não se tornarem cúmplices destes crimes, beneficiando deles. Mas Deus sabe que tinham aprendido a resistir à tentação"


Hannah Arendt em Eichmann em Jerusalém

sábado, 9 de fevereiro de 2008

A Europa e o Futuro


"O génio da Europa é aquilo que William Blake teria chamado "a santidade do pormenor diminuto". È o génio da diversidade línguistica, cultural e social, de um mosaico pródigo que muitas vezes percorre uma distância trivial, separado por vinte quilómetros, uma divisão entre mundos.

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Mas como se poderão equilibrar as proposições contraditórias da unificação económico-política com aquelas da particularidade criativa? Como poderemos dissociar uma riqueza salvífica de diferenças da longa crónica de ódios mútuos? Não sei a resposta. Só sei que aqueles mais sábios do que eu têm de a encontrar, e que a hora é tardia."


George Steiner em A Ideia de Europa

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

Somos


"Somos bípedes capazes de sadismo indizível, ferocidade territorial, ganância, vulgaridade e todo o tipo de torpeza. A nossa inclinação para o massacre, para a superstição, para o materialismo e o egotismo carnívoro pouco se alterou durante a breve história da nossa estada na Terra. No entanto, este mamífero desgraçado e perigoso gerou três ocupações, vícios ou jogos de uma dignidade completamente transcendente. São eles a música, a matemática e o pensamento especulativo ( no qual incluo a poesia, cuja melhor definição será música do pensamento)."

George Steiner em A Ideia de Europa

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

É essencial ser elitista


"É essencial ser elitista - mas no sentido original da palavra: assumir a responsabilidade pelo "melhor" do espírito humano. Uma élite cultural deve ter responsabilidade pelo conhecimento e preservação das ideias e dos valores mais importantes, pelos clássicos, pelo significado das palavras, pela nobreza do nosso espírito. Ser elitista, com explicou Goethe, significa ser respeitador: respeitador do divino, da natureza, dos nossos congéneres seres humanos, e, assim, da nossa própria dignidade humana."

Rob Reimen
Director fundador do Nexus Institute
Introdução a A Ideia da Europa de George Steiner