quinta-feira, 24 de abril de 2008

A Guerra Colonial


... Aí, durante um ano, morremos não a morte da guerra, que nos despovoa de repente a cabeça num estrondo fulminante, e deixa em torno de si um deserto desarticulado de gemidos e uma confusão de pânico e de tiros, mas a lenta, aflita, torturante agonia da espera, a espera dos meses, a espera das minas na picada, a espera do paludismo, a espera do cada vez mais improvável regresso, com a família e os amigos no aeroporto ou no cais, a espera do correio, a espera do Jeep da PIDE que semanalmente passava a caminho dos informadores da fronteira, trazendo consigo três ou quatro prisioneiros que abriam a própria cova, se encolhiam lá dentro, fechavam os olhos com força, e amoleciam depois da bala como um soufflé se abate, de flor vermelha de sangue a crescer as pétalas na testa :
- O bilhete para Luanda- explicava tranquilamente o agente a guardar a pistola no sovaco.-Não se pode dar cúfia a estes cabrões.
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Passámos vinte e sete meses juntos nos cus de Judas, vinte e sete meses de angústia e morte nos cus de Judas, nas areias do Leste, nas picadas dos Quiocos e nos girassóis de Cassanje, comemos a mesma saudade, a mesma merda, o mesmo medo, e separámo-nos em cinco minutos, um aperto de mão, uma palmada nas costas, um vago abraço, e eis que as pessoas desaparecem, vergadas ao peso da bagagem, pela porta de armas, evaporadas no redemoinho civil da cidade.

António Lobo Antunes em Os Cus de Judas

sábado, 19 de abril de 2008

Exercício


Nos dias em que o vento anima a roupa
suspensa desta ou daquela janela
o meu olhar perdido não a poupa
e vai seguindo os movimentos dela


Aqui estou tristezas alegrias
Nesta colina do instante canto
esta vida indecisa de maresias
ó vida ameaçada enquanto


a minha grande esperança é o café
Agora que o tomei
com pressa e frenesim até
o que vai ser a vida ainda não sei


Mosteiro dos Jerónimos fachada
impassível ao vão vaivém humano
aqui ando eu perdido de ano em ano
ó vida noves fora nada


Nos dúbios dias da destruição do verão
quando tudo parece ir acabar
regresso então à versificação
e encontro nos papéis o meu segundo mar


Ruy Belo em Homem de Palavra(s)

domingo, 13 de abril de 2008

Militares ( II )


Nicolau precipitou-se para os carros que aparelhavam rumo a Kimaria. Em poucos minutos puseram-se em marcha. Os soldados saíam das casernas como vespas cujo ninho fora agitado, corriam para os caminhões, meio vestidos, os dedos no gatilho, os petrechos tinindo. Dois capitães gritavam ordens, itinerários, planos, recomendações de última hora. Já a coluna ia em movimento e ainda alguns militares corriam a apanhá-la. Só o comandante e o major não se mostraram.

António Vieira em Fim de Império

sexta-feira, 11 de abril de 2008

Militares ( I )


"Os exércitos permanentes (miles perpetuus) devem, com o tempo, desaparecer totalmente)"

Pois ameaçam incessantemente os outros Estados com a guerra em virtude da sua prontidão para aparecerem sempre preparados para ela; os Estados estimulam-se reciprocamente a ultrapassar-se na quantidade dos mobilizados que não conhece nenhum limite, e visto que a paz, em virtude dos custos relacionados com o armamento, se torna finalmente mais opressiva do que uma guerra curta, eles próprios são a causa de guerras ofensivas para se libertarem de tal fardo; acrescente-se que pôr-se a soldo para matar ou ser morto parece implicar um uso dos homens como simples máquinas e instrumentos na mão de outrem (do Estado) , uso que não se pode harmonizar bem com o direito da humanidade na nossa própria pessoa. Uma coisa inteiramente diferente é defender-se e defender a Pátria dos ataques do exterior com o exercício militar voluntário dos cidadãos realizado periodicamente.

Immanuel Kant em A Paz Perpétua e Outros Opúsculos

sábado, 5 de abril de 2008

Os Homens do Terror


Naturalmente, o convencimento da sua própria superioridade não é uma especificidade da mentalidade árabe; no que a isto diz respeito, os europeus e os norte-americanos não ficam nada atrás de outras culturas. O que, no entanto, lhes confere uma energia particular reside em dois factores. O primeiro é que a crença na própria supremacia tem um fundamento religioso. O segundo é que ela colide com as próprias fraquezas óbvias. Isto leva a uma humilhação narcísica, que exige compensação. Atribuições de culpa, teorias de conspiração e projecções de toda a espécie fazem, desta maneira, parte da economia emocional colectiva. Consequentemente, para eles, o mundo exterior hostil só pensa em humilhar os muçulmanos árabes.
Por isso se reage com irritabilidade extrema a qualquer ofensa, pretensa ou verdadeira. Quão fácil é a instrumentalização duma tal sensibilidade não constitui segredo nenhum. Todo o colectivo de perdedores tende para estados de exaltação, que se deixam explorar politicamente. Por mais fútil ou risível que um motivo possa parecer, a tentação de extrair dele um capital político é irresistível para qualquer uma das partes estrategicamente interessadas.


Hans Magnus Enzensberger em Os Homens do terror, Ensaio sobre o perdedor radical