sábado, 27 de dezembro de 2008

Televisão


Embora algumas pessoas procurem essas práticas antigas para libertar a mente de um ritmo padronizado (ioga, artes marciais, meditação), a maioria não o faz, recorrendo às drogas como alternativa. O álcool resulta, o Valium é mais eficaz. Alguns comprimidos para dormir também surtem efeito. E existe a televisão.


Qualquer um destes métodos funciona. As drogas oferecem-nos uma fuga ao tomarem a dimensão de experiência e meios de descontracção. O mesmo acontece com a televisão.


Todos ajudam a interromper o pensamento obssessivo, mas é este o único ponto em comum com a meditação e outras práticas.


...Perante o televisor, um guru tecnológico absorvente, a nossa mente por certo não se encontra "vazia", apesar da frequência alfa. As imagens fluem e a mente não está calma, sossegada nem liberta. Assemelha-se mais ao cérebro de um morto-vivo. Encontra-se ocupada. Nenhuma renovação, se mostra possível a partir desse estado. Para que tal se verifique, a mente deve abrandar e, uma vez repousada, procurar novos tipos de estímulos e novos exercícios. A televisão não oferece descanso nem estímulo.


A televisão inibe a nossa capacidade de pensar, e ao fazê-lo não nos conduz à liberdade mental, à descontracção ou a um renovar de energias. Apenas conduz a um estado de exaustão mental ainda mais acentuado. Pode libertar-nos temporariamente dos padrões de pensamento obssessivo anteriores, mas é tudo quanto pode fazer. Com ela a mente jamais se esvazia, vive ocupada. E o que é pior, com as imagens e pensamentos obssessivos dos outros.


Nesse sentido, serve apenas para dar continuidade aos mesmos padrões mentais de que procuramos libertar-nos. O nosso espírito encontra-se tão desgastado antes quanto depois de vermos televisão. Disso não pode resultar nada de novo ou criativo, apenas o sono, se tivermos sorte, tal como acontece no caso do álcool e do Valium.




Jerry Mander em Quatro Argumentos Para Acabar Com A Televisão

sábado, 20 de dezembro de 2008

Como Se Entrássemos Num Jardim


É na obra para a qual buscou um título bíblico, De profundis, que o escritor Oscar Wilde dá o sguinte testemunho :"No Natal, consegui apoderar-me de um Novo Testamento em grego, e todas as manhãs, depois de ter limpo a cela e de ter polido os pratos, leio um pouco dos Evangelhos... Nós perdemos a naiveté, a frescura e o encanto dos Evangelhos. Ouvimos lê-los demasiadas vezes, e mal de mais, e toda a repetição é anti-espiritual. Quando regressamos ao grego, é como se entrássemos num jardim de lírios, depois de sairmos de uma casa estreita e escura".

José Tolentino Mendonça em A Leitura Infinita

domingo, 7 de dezembro de 2008

Suave Como Uma Carícia


...Através da janela, os olhares dos machos pesaram tudo o que escolheram. Com os seus traços iluminados pela lâmpada muito próxima, as raparigas olham para o grupo de homens, de sorriso nos lábios. Esperam que cada gesto lhes vá valer mais um cliente. Essa esperança reanima-as. Mostram até ao último dos seus encantos, os que ainda estavm escondidos. Cínicamente, estendem as pernas, pondo à mostra as coxas, até à articulação das ancas, de olhos postos no grupo de homens, e à espera que lhes façam sinal.

Por momentos, as que tiveram mais sorte voltam, de cara sorridente. A velha que prepara café turco num canto do quarto envolve-as com o olhar, suave como uma carícia...
Mircea Eliade em O Romance do Adolescente Míope

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Uma Corrente Indomável


...Os nossos pontos de vista são completamente opostos, e é por isso que somos inseparáveis. Ele, é céptico, eu, sou dogmático. Ele, é materialista, eu, sou vitíma da metafísica. Ele, é calmo e mostra uma indiferença fria, eu, sou como uma corrente indomável.

Andamos um ao lado do outro de noite, atormentados pelos nossos pensamentos. Às vezes, colocamo-nos problemas sobre as mulheres, o amor, os corpos. Mas vemos tudo isso à luz da inteligência, da qual somos ambos orgulhosos. No fundo dos nossos corações, somos os dois autênticos sentimentais. E sabemos disso os dois. E - como sabemos em que é que somos vulneráveis- fazemos o possível para o esconder.


Mircea Eliade em O Romance do Adolescente Míope